terça-feira, abril 15, 2008

Prognóstico do amor que não pode entrar

De repente o cliché que não me abandona, revivo tudo como sempre foi. Pela manhã, aqueles pés que encostam nos meus já foram outros pés e o casaco esquecido em casa, parei em frente a ele, já tinha sido outros casacos. A cor dos olhos, os cotovelos roídos pelo frio. O jeito de se olhar no espelho aguardando aprovação. O levantar da sobrancelha, só saber aquela. A falta de senso do ridículo, que linda falta. Quando o dorso desnudo, sou feliz para sempre. E eu, esbaforo os comentários maldosos iguais, não me queria igual. Explico mais uma vez por que, me quantifico, o crucifico, me abdico, o desclassifico.

segunda-feira, abril 14, 2008

De tudo o que dói
dói mais gostoso em mim

Sobre o passado

Não existe o estéril ou nenhuma dessas palavras que aprendi logo cedo e nunca pude experimentar. Aliás, houve aquela única vez em que me acreditei pura, assustei meus pais e disse que freira seria. Assim, aos catorze anos de idade, migrando inconstantemente entre a lascívia curiosidade sexual e a divindade lúcida transparente no mesmo corpo. Eu adolescente, era como molho quatro-queijos depois de meia-hora. Não demorava para me transformar em algo que não era a princípio e ir tomando formas irrenconhecíveis ao longo do percurso.

Freak Show

As tesouras se arrastavam pelas minhas paredes, mas não acordei com um grito meu. É este vizinho maldito, os chãos que são de taco e as portas que ele bate noite afora. Sonhava tão bem, andava de bicicleta ergométrica e a platéia me elogiava solenemente. Olha que percurso! Vai longe essa menina! Quanta seda, quanta pompa! Palmas, mais palmas! E esse vizinho, o maldito. Me acorda nos segundos entre o corte das lâminas e o majestoso. Não sei o que se passa com os homens de pescoços peludos. Aliás, temo que não seja apenas na região tão superior do seu pequeno corpo. Ele deve ter pêlo nos dedos dos pés. Desses fios longos, tão longos, que cobrem as unhas. E ele não respira direito porque sem unhas, somos uns bons soluços de gente. Talvez seja um ser solfejante, assistente de maestro de orquestra sinfônica. Um anão que conserta órgãos de igrejas. Ele não é certo. Aparece sempre de madrugada e diz que viu a minha luz acesa. Ora, eu moro no escuro. Não cansado, vem checar aos meio-dias. Sonda a minha casa e por muito pouco não escorrega por debaixo da porta e pega a minha correspondência. Não há, não há liberdade em apartamentos. Os gatos caem das janelas, as pessoas são jogadas andares abaixo e viram notícia de telejornal diário. Os anônimos, pobres de nós, ficamos com os vizinhos bizarros. Ó.
Outro dia, não tão outro assim, subia o elevador acompanhada de um careca que carregava uma boa bandeja de alumínio coberta de macarrão sem molho. Desceu dois andares abaixo do meu. Deve ter uma namorada gorda de unhas vermelhas e longas, que enfia a cara no spaghetti e mergulha o careca nos peitos imersos em molho de tomate. Goza, sorridente, com uivos de serpente sendo enforcada.
O zelador, ainda bem, possivelmente nunca lerá o meu pesar. Pois está tão entretido com seu enorme balde de maionese que enche de água suja e sabão em pó. Desce os andares esfregando os degraus, chega no térreo e sorri como quem soubesse para que nasceu.
Não contente com apenas um edifício de freak show, passo minutos olhando as paredes sujas da rua, que devem abrigar mais uns bons pares de homens-elefantes.

sexta-feira, abril 04, 2008

O bipolar

Principalmente quando me sinto assim e nem gostaria de ter que explicar, mas essa coisa de escrever quando está tudo indo muito bem não dá certo, nem um pouco certo porque veja bem, escrever é um grande sistema bipolar. Não tem nada de talento, são as dores intensas, muito maiores do que o quanto deveriam ser sentidas e as alegrias eufóricas, que passam por tão pouco por debaixo da porta ou um telefonema que chateia e te leva de volta para a montanha russa do depressivo. E você ri tanto, tanto mais do que os outros e os cachorros, até os bem feios são muito mais lindos. E você vê que algumas pessoas também são assim, mas ninguém nesse mundo divide nada além de lençóis e cheiro e às vezes uma coca-cola sem gás. E tem essas gentes, eu me impressiono, elas não sabem dizer se faz frio ou não, se o inverno é chuvoso ou como são os ventos do verão. Onde vivem que eu não vivo? Porque eu sei que quando o nariz escorre pode ser de pimenta ou de alguma coisa que foi entrando pra dentro da casa e depois pra dentro do corpo. E esse corpo, tão insatisfeito consigo, coitado do corpo, que é usado de armadura para não entrar o amor que chegará. O corpo acha que não porque é um corpo bipolar, ele não sente como os outros corpos, ele escreve as dores e, especialmente as dores, muito grato, estas lhe dão muito prazer.