sexta-feira, junho 29, 2007

Adormeço

Até que seria bom se caísse tudo. Ou que caísse tudo, já não sei. Assim ela não poderia incomodar mais tanto as pessoas, porque é tudo sobre ela, sempre ela, fazendo as coisas da maneira dela. Pensei então em me tornar escritor porque assim eu poderia desengaçar todas essas questões de dentro de mim. Sempre disse que tem duas coisas juntas que não combinavam: quando ela comia espinafre e usava o palito de dente. Mas acho que deve ter sido a única coisa que ela ouviu de mim. Aí não funcionou, porque ela continuava a comer espinafre e a usar palito de dente. Fica ridículo. A vacona com o dente musgo, sambando um pau na cavidade rosa. Procuro reforçar, porque é uma situação de necessidade e de necessidade não se foge. Eu preciso falar o quão indubitavelmente errado é isso. O tamanho incômodo que as relações chegam. Antes eu não ligava muito, sabe? Podia peidar, podia deixar a casa naquele estado, podia até reclamar das minhas roupas. Se bem que eu acho que tenho bom gosto para roupas. Não sei, talvez seja esse meu jeito muito único, muito focado no meu jeito. Agora não é tão assim, a gente trepa, pede pizza e sempre vem com um bando de azeitonas pretas que ficam no gosto do queijo. E eu não como, decido ir dormir, aí não consigo muito, porque ela quer dormir de janela aberta e o vento que bate nas minhas orelhas, não sei. Gela tudo, meu corpo gela, lembro de quando eu era pequeno. Lembro da Walkíria, que não me deixava tomar gelado. A Walkíria, sim, me escutava. Me ensinou até que o nome dela é estrangeiro: escreve com W. Me fez escrever umas sessenta vezes mas eu gostava. Era um nome muito bonito, nome de empregada. E todo mundo que aparecia em casa com uma cara mais-ou-menos suja eu achava que ou era empregada doméstica, ou porteiro ou lavador de pratos. Mas tinham vezes que eu achava que podia ser uma dessas pessoas que vêm pedir pra gente catar piolho na cabeça delas.
Vou parar porque não era isso o que eu queria contar. Eu me importo com assuntos maiores. Como quando eu me deito na cama, a janela está aberta, não posso nem comentar porque senão ela reclama. Aí as minhas orelhas estão geladas e decido olhar de ponta-cabeça pra todo aquele mundo preto lá fora. Porque são poucas as estrelas por aqui, viu? Quase nunca deste lado do prédio dá pra ver pontinho brilhante. Então eu olho pro preto, eu olho pro pêlo e penso em como tudo vai pro buraco negro.

quinta-feira, junho 28, 2007

Eram somente cinco

A mãe limpando superfície gordurosa
O avô se afogando na caneca
O menino pintando o gesso de verde
O anjo agora caído na escada
O cachorro lambendo a testa do pai
que nunca está lá
pra fazer parte da história

sexta-feira, junho 22, 2007

Conjunto Habitacional

o homem que habita em mim, ele bebe
bebe, fuma e catarra
a mulher que mora em mim também bebe
mas é imberbe
fica bêbada mais cedo
tropeça nele e dá risada

CAPS (Centro de Atendimento Psico-social)

Deitou o rosto sobre o bebedouro
E quando retornou a olhar em vertical
Avistou de longe dois pássaros
Dizia que um era Deus
e o outro, era eu

quinta-feira, junho 21, 2007

mini-ensaio sobre o nu

Agora já vai tarde
Todos sabem o teu segredo
Aquele que era mantido
Entre a porta e o espelho

segunda-feira, junho 18, 2007

Engraçado, eu não gosto de crianças. Elas falam com a gente, acordam a gente e aí não querem dormir. Elas questionam e se ressentem. E entendem tudo o que a gente fala. A gente, essas gentes. Com dor de dente. Com dor de tudo que o mundo arrasta. E aí essas gentes vão pro poço. As crianças não entendem. Mas vão também. E viram adolescentes.

Os meus dias (para Laura)

Hoje o dia acordou segunda-feira
Mas já não é tão segunda assim
Depois do que me aconteceu
Os dias são meus
Eles ficaram tão somente meus

terça-feira, junho 12, 2007

Eu clico em criar. Abre a tela. Tô criando, hein?! Comecei a criar, vai indo. Mas às vezes eu páro assim, páro de criar. Fico triste. Queria estar criando. Aí volta. Clico em editar. Edito o que criei, crio o que ainda não editei. Vai indo assim, até eu parar de criar. E ficar triste de novo e querer estar criando de novo e querer estar querendo de novo...

segunda-feira, junho 11, 2007

Esses meus lugares distantes

As minhas mãos tremem às vezes. Porque eu queria tanto ter sido tudo o que eu disse pras pessoas que eu era. Não que eu tivesse dito pra tantas. Eu contei pro Gandhi e pra ele, que são praticamente a mesma pessoa. E me amou de um jeito incompreensível. Meu Deus! Lânguida e odiosa quando ele acendia um cigarro no meio da madrugada, com aquela tosse rouca. O cinzeiro nunca vazio. Que raiva! Acordava e ficava me encarando com os dois redondos indo-asiáticos. Tinha vontade de gritar volta-a-dormir-deus-do-céu! Mas terminava a noite fingindo não notar o tal tragar. Principalmente porque aquele inverno trepidante me deixava muito alterada, sabe? Adorava ser capaz de não captar nada daquilo.
E ele chorou tanto quando eu fui embora... E eu chorei só pra acompanhar. Do tipo dueto, segunda voz que não aparece muito. Quando na verdade o único choro que eu sempre gostei vinha do sax. Desde nova, quando me mudei pra essa cidade falava: pô, tem aula de sax? Não. Mas tem de clarineta. Que lindo. Que similar. Que embocadura, que triste, que eu.
Agora está casado, com uma tal de Luísa, dessas musas de bossa nova. Eu vi numa foto, cor suor-polônia. Não gosto dos poloneses. Eles fedem picles. Adoram picles de tudo. Qualquer coisa verde, mergulhada num líquido de pote de maionese. Nunca entendi. Como ele me trocou por isso? Tá certo, não me trocou. Apenas seguiu. Viu as ofertas numa loja de departamento e comprou um clandestino igual. Não o culpo. Culpo a minha romântica inabilidade de contribuir pra uma história de final feliz.

Agora olho da sacada as luzes do prédio de INSS apagarem-se vez por vez, pensando na aliança que ele deu pra ela e não pra mim. Deve ter sido dentro desses petit-gateau, que eu adoro. Me ligou outro dia pra falar que poderíamos trabalhar juntos no restaurante que agora ele é chef. E eu seria sua subordinada. Talvez assim eu aceitasse. É bem mais fácil amar alguém indisponível...
E tem um outro, de quem eu gostei tanto e me rejeitou devido sua cativante cafajestice. Mas eu ouvia Jeff Buckley, suicida, e entendia todas as míseras palavras. Ah! Agora, com namorada e tudo, vem me resgatar do passado, dizendo vou praí!! Pedindo me manda foto tua porque agora tu tá mulher. E eu: só se for pra trepar propriamente. Implorando só se for pra você me amar e eu também.
Quando estou bem carente, me imagino de volta nesses meus lugares distantes, fazendo mais estrago. Dizendo que não queria mesmo, que era mixaria. Aliás, eu gosto mais ou menos assim. De sair correndo pra atender telefonemas que nunca vão ser pra mim. De falar pra essa multidão de gente que mora dentro de mim que o mundo é muito mais sozinho do que se pode pensar. De palestrar molhada de chuveiro que o amor num é pra quem sabe amar, não. Que é só pra quem ama e pronto.

domingo, junho 10, 2007

J & M

- E aí, o que achou?
- Do seu pinto?
- É. Sei lá.
- Num é nisso que estou interessada. O nosso lance é outro, sabe? Dá uma tragada?
- Que lance?
- Ah. Quero mais é saber do seu papo desastroso.
- Desastroso?
- É. Eu acho fantástico! Porque pinto é pinto. Num muda muito. Até eu posso ter um hoje em dia. Tá tudo tão acessível...
- Você sempre fala assim?
- Assim como?
- Com esse linguajar. Esse seu jeito de se referir a...
- Ah! Do pinto? Falo assim mesmo. Às vezes pintinho, outras pintão. Outras pinto. Prefiro pinto. E você?
- Como assim e eu?
- O que você fala?
- Eu não vou te contar.
- Você dá nome, né??? Que breeega!
- Eu acho melhor do que generalizar. Além do mais, ele é só meu.
- Fala o nominho, vai.
- A gente nem se conhece bem. Num é momento.
- Ai, que papo. Não é como se eu estivesse te pedindo pra ver. Aliás, eu odeio olhar pra pinto. Nem adianta, acho muito out.
- Out???
- Já foi o Renascimento. Época de pintar xereca e caralho.
- Nossa, mas que boquinha, não?
- Te deixei com vergonha? Eu páro.
- Não, tudo bem. Tô tentando me adaptar.
- Viu, conta o nome, vai.
- Você vai rir.
- Vou não, eu sei me sensibilizar.
- Tá... É Jonas.
- JONAS?????!!!! Como assim? É seu sobrenome ou o quê?
- Aiaiaiai. Num devia ter dito...
- Mas, Jonas? - limpando a garganta - Tá. Desculpa. É só que...
- Era o nome do meu cachorro que morreu faz sete anos.
- E...?
- E eu era muito apegado a ele e tal.
- E você bate punheta pensando nele!!
- Como você é grossa!!
- Não mais que o Jonas...
- Você não sabe como ia te fazer bem colocar um nome na sua...
- Ah, não. Ridí-culo! Digo... num é pra mim, sabe como é, né?!
- Bom, mas eu acho que ia combinar mais comigo alguém que também dá nome.
- Você acha?
- Acho fundamental pra nossa relação, caso você queira continuar me vendo.
- Porra. Tô lisonjeada.
- Então. Pensa aí.
- Ai, mas é meio difícil.
- Quer ajuda?
- Não! Peloamordedeus... Jonas é o suficiente.
- Tá.

Silêncio.

- Pensei.
- Pensou?
- Você vai rir.
- Vou não.
- Tenho vergonha.
- Pra essas coisas você tem, né?
- Sei lá, é muito íntimo.
- Mas agora a gente já superou essa barreira. Já te contei o meu.
- Tá bom. Pera. Deixa eu respirar.
- Hm.
- Vem aqui, deixa eu te falar no ouvido.
- Mas só tem a gente aqui.
- Pôxa...
- Tá bom, fala.
- É Melinda.
- Hm.
- O que você achou? Péssimo, né? Horrível, eu sei!! Mas eu sou ruim pra essas coisas. Eu não deveria ter nem considerado....
- Não. Eu achei lindo.
- A-achou?
- Achei. Combina com Jonas.
- É mesmo?
- Mesmo.

quarta-feira, junho 06, 2007

Nós

Esses poeminhas burlescos, embrulhados em celofane rosa. Eu dizia pra ele: poema, não. Eu sou prosa. Letrinhas de rodapé então, melhor ainda. Mas num adiantou. Que burra! Burra e carente. Gostar de alguém com dedos curtos. Eu nunca gostei de gente com dedos curtos. Nem dos pés nem das mãos. Além disso ele queria casar. Num deu. Mesmo. Minha garganta secou, como quando a gente trepa pela primeira vez e volta pra casa. A mãe pergunta onde você tava minha filha e você pensa que está escrito na sua testa: tre-pan-do. Gos-to-so. Mas responde: no cinema. Qual filme? Aquele novo lá.
E o meu amigo já frisava: você gosta tanto, tanto do amor, que o evita, foge. Fujo. Viro a esquina, entro bufante em qualquer casa. Aí vira coisa escrotérica: com terapeuta dizendo que estou bem melhor agora que consigo controlar a minha impulsividade. Como assim? Então quer dizer que eu era muuuito pior? Caralho. Que merda. Mais dinheiro em terapia. Eu prefiro assim: ou chamo de terapeuta ou de psicólogo. Analista é coisa de Woody Allen.
Tá certo, eu mudo de repente. Um dia sou frio, outro sou quente. Essa reclamação já é antiga. Começou com a minha mãe, quando ela quase me descobriu. Mas eu sempre soube que ela olhava pra mim e não me via. E ele tinha isso em comum. Aterrisava na frente de uma loja e soltava: nossa, mas essa roupa é a cara dela! Trazia pra casa o vestido cor-de-rosa pra ouvir: meu bem, eu já sangrei. Agora só visto vermelho.
Pode parecer que sim, mas ele não foi o único que se magoou, não. Tsc-tsc. Fiquei muito triste, arrasada, aquela vez que me chamou de lixeira. Eu não sou lixeira, ué. É, sim! Não sou. Isso é ar-te! Arte a caceta. A casa tá toda entupida. Iiih. Eu já te disse que vou usar quando estiver inspirada. Quando você estiver inspirada muita coisa vai acontecer, né? É. Vai. Bati a porta e me tranquei.
Tá bom, confesso. hihihi. Nada disso ocorreu. Eu sei, mentir num é legal. Mas me sinto péssima de ver que saí ilesa. Ele nunca me chamou de lixeira. Nossa, nunca me chamaria também. Tudo o que eu fazia era divino. Até quando dei o fora. Quando disse, veja bem meu amor. Não, acho que não disse meu amor. Mas eu disse veja bem. E ele travou uma lágrima. Foi duro porque nessa hora eu tive um eufórico ataque de riso. Não! Não tô rindo de você!!! É que tô nervosa. Mas então... Num dá. Respira... Uuuuf. Pronto. Então, eu preciso ir embora. Mas eu te amo. Ai, que ama que nada. Muito clássica essa coisa de amor. Eu te amo clássico. Você viu naquele filme essa frase, né? Pára de rir. Num é. Veja bem. Eu tô precisando assim, ser mais eu. Eu sempre te deixei ser você. Mais ou menos, né? Então tá. Quer ir, vai. Fui. Com peso, com culpa. Com a minha mãe reclamando mas-ele-era-tão-perfeito! Então casa com ele você, porra!
A sua mãe é recorrente, né? Dizia esse amigo meu. É mesmo. Muito.

sexta-feira, junho 01, 2007

Rótulos

- O pior já passou.
- É. Já passou...
- Agora é esperar.
- É. Esperar...
- Chove forte sempre por aqui?
- Chove. Às vezes, quero dizer.
- Chuva forte.
- É.
- Bom, então eu já vou indo.
- Mas já?
- Tenho que pegar o ônibus das seis.
- Entendi.
- A não ser que...
- O quê?
- A não ser que você queira... sei lá.
- O quê??
- Ah! Você gosta de cerveja?
- Gosto. Gosto sim.
- A não ser que você queira tomar uma comigo. Tem um bar logo alí.
- Tomo duas!
Arranharam as cadeiras de ferro no chão pra poderem sentar. Empurraram algumas moscas no ar e fizeram sinal de cerveja pro gordo no balcão, que apontou de volta um vem-pegar-você. Brindaram ao desconhecido. Foi decidido:
- Você sabe... Posso te chamar de você?
- Pode, claro que pode.
- Engraçado, mas eu não quero saber seu nome.
- Hm.
- É porque eu acho que tudo fica mais interessante assim.
- Sei.
- Verdade. De qualquer forma a gente nem vai mais se cruzar. Você mora onde mesmo?
- Mor...
-Não. Não precisa contar. Não muda nada.
- Okay.
- Vamos falar de algo que não nos envolva. Eu prefiro.
- Tipo?
- Tipo, o que você acha do alcoolismo no Brasil?
- Ah. Alcoolismo não. A gente tá bebendo.
- É justo. Então, o que você acha do Roberto Carlos?
- Acho que é como conversar sobre alcoolismo bebendo.
- Bom, então não sei. Você gosta de arte?
- Não muito.
- Você gosta de música?
- Alguma coisa.
- Sei. Você gosta de comer? Sabe, eu adoro coxinha.
- Não, não gosto muito. Só pra matar a fome.
- Poxa, mas você num gosta de nada?
- Gosto. Gosto quando me perguntam o nome, quando querem saber aonde eu moro e quando tudo isso junto é relevante.