terça-feira, maio 24, 2005

Odores

Descia o sabor de café e junto o de cigarro. Não que a nicotina tivesse o sabor da cafeína, mas para alguém que passara tantos anos fumando e tomando expressos, associar aromas era inevitável. Abria o jornal na página de Política. Tanta desgraça no mundo, tanta gente morrendo em guerras de países que nem sabemos da existência. O cheiro do jornal impresso, fresco. E o cheiro do cigarro. Não que as folhas marcadas de tinta tivessem o mesmo odor da fumaça de Marlboro, mas para quem passara tantos anos fumando e lendo jornais, associar odores era inevitável.

terça-feira, maio 03, 2005

Devoção Cinza

Procurarei entreter. O velho faleceu há doze dias, enquanto ainda resmungava qualquer coisa ao ler o jornal na poltrona cinza. Adorava a poltrona, não me permitia sequer limpá-la. Vivia de ácaros. Sim. Não se alimentava propriamente, não gostava de abandonar a poltrona sozinha ao menos que já estivesse adormecido e morimbundo dirigia-se à cama fria.
Os jornais a ler. Todos antigos, recolhidos de qualquer lata de lixo vizinha. Era eu quem fazia tal serviço, claro. Todas cinco horas da manhã, algumas páginas perdidas pela Camboriú. Sempre ventou nesta parte de São Paulo. Tive muito que correr atrás das folhas que levantavam vôo.
Marco Antônio almoçava às 12horas, na poltrona. Minha neta, Cecília, deliciava-se ao debruçar no encosto cinza para ouvir o avô contar anedotas após o colégio. Não sabia da doença. E nem deveria saber. Crianças não entendem a morte tão bem quanto nós.
Foi então que enfartou numa tarde chuvosa e com bolinhos de chuva espalhados pelo carpete. A poltrona açucarava os cotovelos do Marco Antônio, que chacoalharam unidos no vazio frenético do fulminante.
Erguia o pijama do velho ao varal quando deu-se o surto subitamente. Corri-me à sala de estar e encontrei Marco Antônio num sono de açúcar e canela. Eternamente consumada a relação com a poltrona. Balbuciei um "Até que a morte os separa" e em seguida cerrei-lhe as pálpebras minutos antes estarrecidas.