quarta-feira, agosto 29, 2007

Amanheço

Quando já cedo, pensava sozinha de si a aurora fosse mesmo a enganadora dos dias. Amanhecia menina, dormia resina. Passava cruzando retalhos, com letras grandes espalhava vogais. As miúdas restavam para as que não são lembradas jamais. E em seguida a mão nas roupas, caídas entre meias e camisas, todas brancas, todas secas, resmungava melodias.
À tarde café na mesa, não havia quem viesse para os biscoitos. Estavam alí para impressionar. Muito obrigada, obrigada. Aplaudíam-na os fantasmas de cortinas a ventar. Dispersava alguns farelos, cortava o pão e dançava a toalha no ar. Via pássaros descer fio reto e os movia a voar.
Queria então, caísse a noite, caíssem os olhos, mas somente o ritual pra fazer adormecer: algumas luzes no corredor, alguns cômodos para escurecer. Pingava os dedos nos interruptores, espiando o telefone na sala de estar. Alcançava o último quarto, suspirava pra ir deitar.
Os pés finalmente, esfriavam-se dos chinelos. Estendia os lençóis de folhas para monopolizar seus curtos pêlos. Vedava as pálpebras, tocava a púbis no nevoeiro. Acalentava os ossos mansos, os corpos do seu corpo unindo-se em desejo. Segundos de eternidade desconfiavam seu silêncio. Era apenas um momento.
E no cume da majestosa letargia, acrescentava-se luz ao cinza. Via passos, via Borges, era o gato. Via o corredor por debaixo. Crescia em espasmos, espantava o quente bafo. Encolhia dentro do peito o mais unânime segredo: via a aurora do seu medo completar o seu enredo.

Nenhum comentário: