terça-feira, maio 03, 2005

Devoção Cinza

Procurarei entreter. O velho faleceu há doze dias, enquanto ainda resmungava qualquer coisa ao ler o jornal na poltrona cinza. Adorava a poltrona, não me permitia sequer limpá-la. Vivia de ácaros. Sim. Não se alimentava propriamente, não gostava de abandonar a poltrona sozinha ao menos que já estivesse adormecido e morimbundo dirigia-se à cama fria.
Os jornais a ler. Todos antigos, recolhidos de qualquer lata de lixo vizinha. Era eu quem fazia tal serviço, claro. Todas cinco horas da manhã, algumas páginas perdidas pela Camboriú. Sempre ventou nesta parte de São Paulo. Tive muito que correr atrás das folhas que levantavam vôo.
Marco Antônio almoçava às 12horas, na poltrona. Minha neta, Cecília, deliciava-se ao debruçar no encosto cinza para ouvir o avô contar anedotas após o colégio. Não sabia da doença. E nem deveria saber. Crianças não entendem a morte tão bem quanto nós.
Foi então que enfartou numa tarde chuvosa e com bolinhos de chuva espalhados pelo carpete. A poltrona açucarava os cotovelos do Marco Antônio, que chacoalharam unidos no vazio frenético do fulminante.
Erguia o pijama do velho ao varal quando deu-se o surto subitamente. Corri-me à sala de estar e encontrei Marco Antônio num sono de açúcar e canela. Eternamente consumada a relação com a poltrona. Balbuciei um "Até que a morte os separa" e em seguida cerrei-lhe as pálpebras minutos antes estarrecidas.

3 comentários:

Anônimo disse...

Devoção Cinza.... Amarelo Manga!!! aheuhauah eu vo pegar esse filme prassistiiii curti mto!!!!

Anônimo disse...

Só agora que fui ler... Rs... Adorei isso... Dá pra imaginar a cena a meu modo... muito interessante.. gostei...

Anônimo disse...

que???.... parei contigo!!!!

GENIAL!